Do exército ao Itamaraty: a desarticulação do Estado brasileiro, por José Alexandre Altahyde Hage
Faz-se necessário um breve arrazoado para se compreender a questão a qual se refere o título deste artigo. Este texto não tem propósito de abrir polêmica nem de contribuir para debates que não tragam luz sobre questão de política nacional que ganhou dimensão nos últimos dias. Trata-se da crise que envolve a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, o Executivo e o Ministério da Defesa. O início do imbróglio se deu por causa da proposta do secretário dos Direitos Humanos Paulo Vanuchi, com apoio do ministro da Justiça e oposição do ministro Jobim, da Defesa, para se rever a Lei de Anistia e procurar condenar torturadores e todos aqueles que, de alguma forma, serviram os governo de 1964 a 1985.
Lei de Anistia que no governo João Figueiredo trazia dois objetivos. Primeiro anular qualquer forte agravamento político que pudesse haver entre os “servidores do Estado”, seja nas Forças Armadas ou em outros órgãos públicos, e aqueles que militavam a favor da luta armada por meio de movimentos de guerrilha, como os do Araguaia (PC do B) e a Vanguarda Popular Revolucionária, que se encarregava da versão urbana da contestação armada. Na Lei de 1979 não há distinção entre “errantes” da repressão e da luta armada. Tudo foi zerado.
O segundo objetivo, embora não ligado automaticamente ao primeiro, foi o de aproveitar o momento de pacificação política para superar o problema causado pelo feito de 13 de dezembro de 1968, com a criação do Ato Institucional 5, que desconhecia o direito de hábeas corpus e outras garantias individuais. Vale a pena recordar que foi com o fim do AI-5 que se findou também a censura sobre a imprensa, ficando algum limite de difusão sob conveniência dos diretores das empresas de comunicação ou fruto de apelo de grupos da sociedade civil. A partir daí volta-se gradualmente à normalidade, como aprovação dos partidos políticos de grandeza nacional, a exemplo do Partido dos Trabalhadores que atualmente governa o Brasil.
O fato de haver vontade nacional para rever a história não tem demérito, cabe à contemporaneidade dar vazão ou não às suas perspectivas de revisão. Na República francesa ainda há quem queira defender ou atacar o marechal Pétan, que governara a França sob o poder do III Reich (governo de Vichi). Certamente há também as mesmas preocupações, prós e contras, em Portugal de Salazar e na Espanha de Franco. No Brasil não seria diferente sob regime de democracia e de liberdade de opinião. Mas no País o intento de reviver o passado pode ter outra coloração, a de mirar em um objeto e derrubar outro.
O resultado que pode sair dos esforços de revelar a verdade, conforme proposta do secretário Vanuchi, é o aumento da desarticulação do Estado brasileiro. Em outras palavras, paulatinamente o poder nacional brasileiro é comprometido e desmoralizado sob procuras de virtude que dificilmente encontrariam opositores, até porque o moderno político e intelectual brasileiro não carregaria com prazer a pecha de reacionário. E qual seria o propósito disso? Além de se procurar pela justiça haveria também efeitos colaterais na política nacional e na diplomacia – daí a variante internacional que a atual crise traz em seu bojo.
Porventura, se os esforços da Secretaria de Direitos Humanos, com possível apoio do Executivo, tem o fito de levar justiça para aqueles que foram vitimados pela ditadura, outro resultado poderá surgir. Diga-se de passagem, que se trata de resultado não recente, que faz parte de um processo iniciado na segunda metade dos anos 1980, mas com efeitos que ainda perduram.
A procura de se limitar o poder nacional brasileiro, começando pelas Forças Armadas, é algo que teve início no governo de José Sarney. O objetivo era bastante compreensível, embora temerário. O fim do movimento político-militar de 1964 exigia virada de página e havia ânsia para se saber o que se devia fazer com o exército em um país que desejava ser democrático. Limitar a atuação dos militares parecia ser urgente para aquele período. Ninguém mais queria imaginar a vida política brasileira sob novas intromissões do Exercito brasileiro como se ele fosse uma espécie de poder moderador na era republicana. Não deveriam mais se repetir datas como 1892, 1922, 1937, 1954, 1955 e, por fim, 1964.
Por outro lado, os fatos entre 1986 a 2009, que parecem ser apenas uma questão nacional e limitada institucionalmente têm ligação internacional e não se prende somente ao Exercito. Aliás, é sempre lícito averiguar as questões internas para se perceber quais são as pressões, desejos e outros institutos internacionais que ganham ou perdem com decisões internas, seja no comércio, energia etc.
Já foi dito que o enquadramento das Forças Armadas brasileiras em um clima de redemocratização se fez urgente não somente pelo temor interno, mas também por sugestões internacionais, sobretudo após a da Guerra Fria, em que erradamente se deu a entender para as antigas potências médias, caso do Brasil, que não haveria mais por que desenvolver a grande estratégia. Grande estratégia que, certamente, pensa a evolução do poder nacional, com o bom funcionamento das Forças Armadas, bem como da tecnologia e da industrialização em moldes autônomos, dependendo do externo somente no mais sofisticado e complexo.
Ainda no final do grande embate ideológico entre o Leste e o Oeste houve quem também preferisse um novo papel para os exércitos nacionais, principalmente os latino-americanos. Havia a idéia de que sem o grande conflito mundial aqueles organismos estatais poderiam ter nova roupagem e função, a de serem uma “gendarmerie”, desarticulado dos problemas do Estado. Vale dizer, um exército sem ser exercito, mas uma polícia nacional.
Tanto no campo das Forças Armadas, almirante César Flores, quanto no campo da universidade, professores Domício Proença Junior e Eugênio escreveram textos dizendo que o enxugamento do orçamento militar a partir dos anos 1990 não deixaria de ter viés político e ideológico, inclusive para fazer com que o Brasil fosse mais visto pelas organizações internacionais, notadamente o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial e Organização dos Estados Americanos. As duas primeiras se contentariam pelo fato de haver superávit primário; a segunda pela possibilidade de haver menos trabalhos nas questões mais prementes.
A ausência de um exército bem preparado e equipado é, ao mesmo tempo, uma falta do poder nacional que se vê despreparado para os reais desafios que o Estado pode encontrar, independente de haver ou não ameaça à segurança nacional – este é o histórico do Exército nacional. Mas a busca para se obter a reforma institucional, limitando e concebendo novas versões para o poder político não se limitou aos militares, também arrumou espaço no Itamaraty.
A respeito da Chancelaria a procura para se procurar reformar, ou imputar novas fórmulas que fossem condizentes com governos reformistas, diga-se liberais, vêm da administração Collor de Mello e sua tentativa de afastar antigos quadros a favor daqueles mais próximos de sua plataforma. Daí se compreende o embate silencioso, mas duro, entre o ex-chanceler Francisco Rezek com o secretário-geral, embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima por causa de concepções divergentes.
Qual era afinal a fórmula de Collor? Fazer com que o Itamaraty fosse mais simpático às boas novas que chegavam do hemisfério norte e de alguns agregados do sul, a exemplo da Argentina e do México do governo Salinas: liberdade de mercado, desregulamentação, privatização e preocupação com o meio ambiente. Esforços que foram um pouco quebrados por causa do período Itamar Franco que havia convidado o ministro Celso Amorim para a Casa em 1993.
Sobre isso é interessante consultar dissertação de mestrado do diplomata argentino, José Maria Arbilla (IRI-PUC-RIO) sobre duas experiências análogas no intuito, mas diferentes no resultado, a reforma conceitual do Palácio San Martin, a Chancelaria da Argentina e a brasileira, no Itamaraty. No San Martin houve reforma conceitual, adequando novos quadros às modas e apelos após Guerra Fria dando, assim, o suporte necessário ao governo de Carlos Menem para se aproximar fortemente dos Estados Unidos, e para com eles exercer “relações carnais”.
Apesar de compartilhar o mesmo período o governo Collor não havia logrado reformar a Chancelaria da mesma forma que o vizinho em virtude da existência de uma carreira bem construída e tradicionalmente ciosa de seu valor, imune a modismos e idéias que pudessem descaracterizar a doutrina e a coerência histórico-política que o Itamaraty traz há décadas.
No entanto, da mesma forma que o Exército brasileiro, o Itamaraty também vem sofrendo “ajustes” de teor ideológico e programático que pode ser considerado uma mudança de rota, agora mais à esquerda. Isto porque se havia algo que a Chancelaria muito valorizava era sua relativa distância de embates temporais e se pretendo aquilo que mais tinha noção de permanente e relevante ao interesse nacional – interesse nacional acima de querelas governamentais e partidárias. Mesmo correndo o risco de leviandade se pode dizer que o apego exagerado da Casa à questão hondurenha traduz a alteração de comportamento, imputando valores e aceitando visões que mais atrapalham a atividade exterior do que contribui para bom trabalho.
O que se vê em Honduras se reflete no Brasil, a palavra escrita e lavrada perde valor. O que as instituições pregam para que haja o equilíbrio político tão necessário corre risco de não existir justamente para dar azo a desejos anacrônicos, embora compreensíveis. O Itamaraty dá a entender que não consegue se divorciar do imbróglio hondurenho, mesmo que haja sinais claros de que a Constituição daquele país e sua população aprovem novas medidas para se ter a tão querida paz. Desejam-se boa sorte a Zelaya para que ele faça sua parte, abra espaço para quem foi escolhido em eleição livre e observada pelas Nações Unidas.
Por caminhos distintos a sorte por que passa o Exército nacional não difere muito da Chancelaria. A arma de terra se enquadra em um tipo de revisão histórica que mais guarda conveniência com desejos internacionais do que domésticos. A desmoralização do Exército não ajuda a se fazer justiça; ajuda sim a fazer cisão, até àqueles que não serviram a ditadura, caso do ministro Jobim. Em outro caso, a alteração programática do Itamaraty tampouco contribui para a positiva inserção internacional do Brasil. Difícil haver inserção internacional respeitosa sem um exército confiante e um corpo diplomático coeso, sem partidos.
O desejo de se enquadrar as Forças Armadas, em especial o Exército, não é diferente daquele de o reduzir a uma polícia melhorada, sem resguardo político para exercer sua real função. Em princípio, se esse intuito ganhar corpo haverá quem goste dessa operação. Nos Estados Unidos haverá quem concorde com isso, assim como na Europa Ocidental, em muitas organizações não-governamentais e internacionais. A questão é saber qual vantagem terá o governo Lula da Silva e seus descendentes diretos. Será tudo isso um passaporte ao reconhecimento internacional? Se for assim seu governo não guardará grande distância de seu antecessor, embora o presidente se ampare em uma administração à esquerda, como alega ser.
No projeto do secretário Vanuchi, e contestado por Jobim, há o desejo de se modificar, inclusive, nomes dados a ruas, rodovias, patrimônio público que relembre quem tenha trabalhado para a ditadura, independente da qualidade do trabalho e de sua contribuição para o Brasil. Nessa seara, a rodovia Castelo Branco, em São Paulo, deverá ser renomada, em hipótese. O mesmo destino deverá ter o embaixador Ítalo Zappa, grande arquiteto do reconhecimento de independência da África lusófona nos anos 1970, mesmo que o saudoso diplomata tenha se firmado como homem simpático na construção do Terceiro Mundo, em Cuba, na China e no Vietnã seu nome deverá ser retirado de escola pública no Rio de Janeiro.
Para concluir. Em entrevista feita em 1997 o assessor especial de relações internacionais para a Presidência, Marco Aurélio Garcia, afirmara que Roberto Campos se tornara errante pelo fato de ter servido ao governo Geisel como embaixador em Londres em 1974. Seguindo esse raciocínio, Ítalo Zappa, Paulo Nogueira Batista, Severo Gomes, Petrônio Portela, Bautista Vidal, Rogério Cerqueira César, Andrada Cerpa e outros, “devem” se redimir pela ligação com os governos militares, mesmo que tenham procurado dar o melhor deles. Seja nesta vida ou na outra.
José Alexandre Altahyde Hage é Doutor em Ciência Política pela Universidade de Campinas – Unicamp; atualmente desenvolve estudos pós-doutorais na área de História na Universidade Federal Fluminense – UFF ([email protected]).
Os comentários estão desativados.