A instabilidade contínua na Guiné-Bissau, por Kamilla R. Rizzi

A história recente da Guiné-Bissau ajuda a explicar sua conjuntura de crise política e institucional continuada. O país nasceu de uma guerra de libertação contra o domínio português, quando o líder da guerrilha Amílcar Cabral criou células revolucionárias, sob a égide do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC). Sua ação foi relativamente bem sucedida, tanto que, quando da saída das tropas portuguesas, boa parte do território guineense estava controlado pelo PAICG. A independência do país foi declarada, unilateralmente, no dia 24 de setembro de 1973, mas reconhecida por Portugal apenas em 10 de setembro de 1974.

Após a morte de Amílcar, em 1973, seu meio-irmão Luís o sucedeu como líder, transformando, após a independência, as células do PAICG em um canal de informação, inteligência e segurança, a partir de um cálculo estratégico-político: já naquele momento, Cabral demonstrava preocupação com o poder de um exército dominado pelas camadas sociais mais baixas e sem educação. Iniciou-se um amplo programa de reconstrução nacional e de desenvolvimento com inspiração socialista (além do apoio de União Soviética, China e Cuba), mas a desconfiança aliada à instabilidade instalaram-se no PAICG desde a morte de Amílcar e da independência. Foi nessa altura que, usando tal justificativa, João Bernardo Vieira (o Nino Vieira), Primeiro Ministro de Cabral e antigo comandante das Forças Armadas, organizou o Golpe Militar de 14 de Novembro de 1980. Sem derramamento de sangue, esse golpe levou à desvinculação do PAIGC de Cabo Verde, que preferiu se tornar um partido separado. A constituição foi suspensa e um Conselho Militar da Revolução (com 09 membros, liderado por Nino Vieira), se formou, sendo que em 1984 foi aprovada uma nova constituição, fazendo o país retornar a um regime civil, sob a presidência de Nino. O novo presidente, após tentativa de golpe de Estado em 1985, distanciou-se sensivelmente das linhas socialistas, voltando-se para o Ocidente. Em fevereiro de 1989, reformas ministeriais foram seguidas por eleições legislativas e presidenciais, essas vencidas por Nino Vieira, por unanimidade.

Embora o regime de Nino Vieira tenha se caracterizado por acusações de eliminação dos oponentes políticos (e dissidentes), não devem ser ignoradas as reformas no setor da saúde e medidas para o aumento da produção agrícola e diversificação da economia por ele tomadas. Contudo, a performance econômica continuou a ser baixa e o país continuou a depender da ajuda externa, para gerir os déficits crescentes.

Entretanto, as Forças Armadas nunca perderam o senso de direitos adquiridos, a partir de sua experiência na guerra de libertação – vale lembrar a equiparação de poderes ainda hoje existente na Guiné-Bissau entre o Presidente e o Chefe das Forças Armadas. Esta coexistência de um exército de libertação e um partido de cunho socialista no governo acabou por favorecer execuções e assassinatos políticos.

Em 1991, a Guiné-Bissau tornou-se uma democracia multipartidária, com o fim da proibição dos partidos políticos. Nas eleições de 1994, Nino Vieira obteve 52,02% dos votos (contra 47,98% de Kumba Ialá, candidato do Partido Renovador Social (PRS) e tomou posse em setembro do mesmo ano como o primeiro Presidente democraticamente eleito da Guiné-Bissau. Um levante militar chefiado pelo General Ansumane Mane, em junho de 1998, depôs o Presidente Nino (que se exilou em Lisboa) e levou a uma sangrenta guerra civil. É importante ressaltar que essa insurreição, bem como a maior parte dos demais, se originou no descontentamento existente nas Forças Armadas do país, como “forma de proteção”, por parte de seus membros. De 1998 a 1999, mais de 3 mil estrangeiros fugiram do país e a agitação se encerrou apenas em maio de 1999, quando Mané entregou a presidência provisória a Malam Bacai Sanha (líder do PAICG), que convocou eleições gerais.

Em 2000, realizaram-se as eleições e Kumba Ialá (PRS) se elegeu com 72% dos votos (derrotou Sanha), formando um governo de coalizão entre o PRS e a Resistência da Guiné-Bissau/Movimento Bafatá. Em novembro de 2000, Ansumane Mané foi morto por tropas oficiais em uma fracassada tentativa de golpe. Em setembro de 2003, novo golpe encabeçado pelo general Veríssimo Correia Seabra ocorreu, durante o qual os militares prenderam Kumba Ialá. Henrique Rosa foi empossado Presidente provisório. Em março de 2004, o PAIGC venceu as eleições, ficando com 45 das 100 cadeiras da Assembléia Nacional; o PRS obteve 35 cadeiras sendo que Carlos Gomes Júnior, líder do PAIGC, foi indicado como Primeiro-Ministro.

Quando retornou ao país, em 2005, Nino Vieira se candidatou à presidência. O PAIGC – seu antigo partido – apoiou o ex-presidente interino Malam Bacai Sanhá. No segundo turno, Nino derrotou Sanhá com 52,35% dos votos, e tomou posse em 1º. de outubro. Em 28 de outubro seguinte, Nino Vieira dissolveu o governo do Primeiro-Ministro e em seguida nomeou seu aliado político Aristides Gomes para o cargo. Nesse ambiente instável, de contínuas tentativas de conversação e estabilização político-instituiconal, o governo guineense evoluiu para os fatos de março de 2009, com os assassinatos do próprio Presidente Nino Vieira e do General Batista Tagme Na Waie, ainda não completamente desvendados. Em dezembro seguinte, veio à público uma carta-protesto assinada pelo coronel Samba Djaló, dando conta das clivagens internas dentro do PAIGC e das Forças Armadas.

Agora, em 1º de abril, mais uma tentativa de golpe resultou na curta detenção domiciliar do Primeiro-Ministro Carlos Gomes Júnior e na prisão do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Almirante Zamora Induta, por um grupo de militares rebelados liderados pelo antigo chefe das Forças Armadas José Américo Bubo Na Tchuto e pelo e o atual vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Major-General António Indjai. Com a prisão dos envolvidos e dos aproximadamente 40 militares que os apoiavam (inclusive do coronel Samba Djaló), o Presidente Sanhá pronunciou-se, indicando que o motim ocorreu no âmbito das Forças Armadas, não resultando em quebra da normalidade institucional do país, até o momento. No entanto, representantes da CPLP, União Africana, CEDEAO e ONU demonstram preocupação com os acontecimentos posteriores.

Além de uma dimensão territorial reduzida (36.000 km²) e uma população limitada e jovem (1.600.000 habitantes, sendo 56% em idade economicamente ativa, em 2008) – fatores favoráveis a um desenvolvimento rápido e controlado – o país ainda dispõe de outras vantagens reais: uma costa marítima aberta para as Américas e Europa, recursos abundantes que apresentam potencial econômico (agricultura, pesca, setor de minas, energias renováveis e o turismo), bem como uma identidade nacional que integra uma grande diversidade cultural e a associação à Lusofonia e Francofonia.

Entretanto, a massa salarial dos funcionários públicos (corresponde a 75% do orçamento do Estado) e a alta dívida externa continuam pesando sobre as finanças guineenses, dificultando a regularidade do pagamento dos salários dos funcionários e dos próprios militares (gerando, assim, mais um ponto de atrito). A “Estratégia Nacional de Redução da Pobreza” (DENARP), lançada pelo governo em 2006, no sentido de incentivar o desenvolvimento econômico como base da evolução/estabilização do país, tem buscado apoio e reconhecimento internacional. Além dos planos de ajuda emergencial do FMI e o Banco Mundial, o país ainda é intensamente dependente da ajuda externa e busca manter um diálogo constante com a comunidade internacional, mesmo com as perturbações eventuais – devido à instabilidade ou carências em termos de governança.

Além disso, o aprofundamento de redes de tráfico de droga, desde 2004, levantou a suspeita da transformação de facções rivais dentro das Forças Armadas em “milícias” a serviço do tráfico internacional. O Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crimes (UNODC) afirma que a Guiné-Bissau está se tornando o mais novo Narco-Estado mundial, estimando que aproximadamente 40 toneladas de cocaína transitam pelo território guineense por ano, se confirmando como rota do tráfico internacional, originado na América do Sul com destino na Europa (BERNARD, 2009). Segundo o estudo, o tráfico tende a fomentar a instabilidade no país, pois alguns membros do Exército facilitam o comércio ilegal, ao garantirem a passagem de barcos e aviões que transportam narcóticos. No ranking sobre Percepções da Corrupção da Transparência Internacional 2008, a Guiné-Bissau ocupa a posição 158 de um total de 180 países, sendo também classificado como “Not Free”. Nos últimos anos, a corrupção generalizada tem se ampliado através da ação dos cartéis de drogas, muitas vezes infiltrados nas Forças Armadas, na administração civil e mesmo no poder judiciário.

A comunidade internacional tem demonstrado apoio ao processo de profissionalização do exército nacional, a partir das reformas. Entre os principais pontos previstos no aperfeiçoamento das Forças Armadas e do setor de segurança no país estão: a) serviço militar obrigatório; b) diminuição do efetivo de 10.000 para aproximadamente 3.000 homens; c) reestruturação completa das diferentes forças policiais do país, harmonizando umas e extinguindo outras, para a criação da Guarda Nacional Republicana (atualmente, o país conta com a polícia de proteção pública, polícia judiciária, polícia de trânsito, polícia de intervenção rápida, polícia marítima, guarda-fiscal e guarda-florestal); d) instituição da Escola Nacional da Polícia na Guiné-Bissau; e) modernização do setor judiciário, com a construção da primeira prisão de alta segurança; f) recenseamento dos Combatentes da Liberdade da Pátria (veteranos da guerra de libertação); g) criação de mecanismos de ocupação e atividades complementares dos soldados em tempo de paz, com o objetivo de prepará-los para ação em missões humanitárias e de produção dos seus bens de consumo; e h) tentativa de um equilíbrio étnico nas Forças Armadas (dominadas atualmente por indivíduos da etnia Balanta) e a elevação da escolaridade no exército, em geral.

Nota-se, assim, que esse procedimento reformista – já em curso de forma discreta – tem sido objeto de forte resistência por boa parte dos militares, especialmente os ocupantes dos cargos mais elevados, que vêem seu poder de influência diminuído. Essa resistência em si (em cujas motivações da recente tentativa de golpe se enquadram) demonstra a importância da reforma, pois aqueles que se opõem a elas são exatamente os envolvidos na rede de crimes e tráfico de drogas, em regiões no interior do território (os serviços de segurança, estatizados, também devem entrar nesse processo) ou, ainda, em ações de corrupção, expurgos políticos e desvios internos nas Forças Armadas.

Em linhas gerais, a estabilização político-institucional guineense passa, obrigatoriamente, pelo sucesso dessas reformas, complementada por ações sócio-econômicas que efetivem o desenvolvimento do país.

Referências

  • BERNARD, Emanuelle. (2008). Guinea-Bissau: drug boom, lost hope. Democracy News Analysis. Disponível em: [http://www.opendemocracy.net/article/guinea-bissau-drug-boom-lost-hope] Acesso em: 10 fev. 2010.
  • CARDOSO, Carlos. (1995) A transição democrática na Guiné‑Bissau: um parto difícil. Lusotopie. Disponível em : [http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/cardoso.rtf] Acesso em: 10 mar. 2010.
  • GALLI, Rosemary E. (1987) Guinea-Bissau: politics, economics and society. London: Frances Pinter Publishers.
  • MAP OF FREEDOM. (2009). Disponível em: [http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=22&year=2009&country=7619] Acesso em: 09 mar. 2010.
  • MONCRIEFF, Richard. (2009) Guinea-Bissau: the post-election test. Democracy News Analysis. Disponível em: [http://www.opendemocracy.net] Acesso em: 13 ago. 2009.
  • ANGOLA PRESS. (2010). Tentativa de golpe de Estado na Guiné-Bissau em destaque. Disponível em: [http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/africa/2010/3/13/Tentativa-golpe-Estado-Guine-Bissau-destaque,d36eac5e-08ad-42e7-8154-381d35f47e7a.html] Acesso em: 01 abr. 2010.

Kamilla R. Rizzi é Doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e Pesquisadora Associada no Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais (NERINT/UFRGS).

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