Os acordos migratórios no Mercosul e os brasiguaios: solução para o problema?, por Suhayla Mohamed Khalil Viana & Vitor Stuart Gabriel de Pieri

O presente trabalho tem por objetivo tratar dos conflitos entre paraguaios e brasiguaios, como são conhecidos os brasileiros que vivem no Paraguai, principalmente no que se refere à região de fronteira, e dos acordos migratórios há pouco ratificados pelo governo paraguaio.

É preciso ressaltar que, embora a imprensa trate todos os brasiguaios da mesma forma, estes não constituem uma massa homogênea. De forma resumida e num esforço de sistematização dos diversos grupos sociais e econômicos dos brasileiros que vivem no Paraguai, Sprandel (2000) elaborou uma classificação segundo suas ocupações e que reproduzimos a seguir: proprietários de terra, comerciantes e madeireiros; pequenos proprietários de terra com algumas outras atividades, espalhados pela zona de fronteira; empregados dos setores agrícola, comercial e madeireiro; peões que trabalham nas diversas fazendas; população marginalizada como prostitutas, prisioneiros, meninos e meninas em situação de risco; criminosos organizados ligados a quadrilhas de roubo de carros e de cargas, tráfico de drogas, prostituição e jogos de azar.

Segundo algumas estimativas, os brasiguaios se concentram principalmente nos municípios fronteiriços e podem chegar a uma população de 300 mil habitantes como exposto no esquema abaixo:

Fonte: Diario Última Hora, 14/10/2008.

São várias as tensões advindas dessa presença brasileira em território paraguaio, particularmente no que diz respeito à criação de sentimentos nacionalistas e xenófobos entre os paraguaios. Dentre os problemas apresentados estão a preocupação paraguaia com o enfraquecimento de sua identidade nacional na região fronteiriça, uma vez que os estrangeiros, muitas vezes, mantêm sua própria língua, usam sua própria moeda, hasteiam sua própria bandeira e são donos da maior parte das terras mais produtivas. A questão central, no entanto, está relacionada à disputa de terras entre os movimentos camponeses paraguaios e os imigrantes brasileiros proprietários de terras, os quais foram atraídos em grande medida pelos baixos preços das terras naquele país. Entre 70 e 80% da produção de soja do Paraguai é realizada por esses imigrantes, sendo que a atividade econômica sojeira é responsável por cerca de 30% do PIB nacional (ALBUQUERQUE, 2009).

Nos últimos anos, houve diversos ataques de camponeses aos brasiguaios. Casas foram incendiadas e lojas invadidas. Esses brasileiros se queixam também da discriminação contra seus filhos nas escolas locais e da intimidação das autoridades de imigração, já que a maioria deles nunca recebeu documentos de identidade paraguaios. Desde o fim da década de 1990, o bloqueio de estradas paraguaias por parte desses brasileiros se tornou freqüente como forma de defender seus interesses, inclusive para impedir a aprovação de leis que os desfavorecem. Os campesinos, por sua vez, reclamam que os brasiguaios promovem a destruição florestal de forma indiscriminada e fazem uso excessivo de agrotóxicos nas lavouras de soja, o que contamina o meio ambiente e afeta a população local. Além disso, muitas vezes, há o confronto entre prefeitos de origem brasileira e os camponeses paraguaios (ALBUQUERQUE, 2009). Como agravante da situação, há a contratação de milícias armadas por parte dos brasiguaios com o objetivo de impedir a ação de possíveis invasores.

Cumpre ressaltar que, no último ano, o Paraguai passou por um processo eleitoral competitivo que levou à derrota do Partido Colorado, no poder durante 60 anos, e colocou no governo o atual presidente, Fernando Lugo. Adepto da Teologia da Libertação e ex-bispo da Igreja Católica, Lugo é proveniente de São Pedro, uma região muito pobre do Paraguai, fora da área relativamente mais próspera do cultivo da soja e do algodão, e se caracteriza por uma forte vinculação com movimentos camponeses e indígenas. Voltado de forma imperativa para as questões sociais, uma das bases de sua plataforma de campanha eleitoral foi o compromisso com a reforma agrária, o que afetou diretamente os agricultores brasileiros localizados em solo paraguaio e o que, de fato, ocasionou a exacerbação das tensões no campo, além de diversas controvérsias entre os governos brasileiro e paraguaio devido à insegurança e ao medo da expulsão e do ataque a milhares de brasileiros localizados no Estado vizinho.

Durante sua campanha à presidência do Paraguai, Lugo apresentou uma postura combativa em relação ao Brasil, principalmente no que concerne às demandas pela revisão do Tratado de Itaipu. Com sua vitória, algumas temáticas se tornaram parte integrante da agenda bilateral Brasil-Paraguai: os acordos energéticos (Itaipu), a questão comercial (Ciudad del Este) e os problemas migratórios (brasiguaios que adquiriam terras sem se submeter à reforma agrária).

O ano de 2008 foi especialmente crítico, com um grande número de invasões a terras de brasiguaios nos municípios de fronteira de Conceição, São Pedro e Alto Paraná. Tudo isso em meio a pressões dos sem-terra paraguaios para que o governo de Lugo desapropriasse as terras em nome de estrangeiros em situação ilegal, o que representa aproximadamente a metade dos casos dosbrasileiros instalados em áreas rurais no país (NICKSON, 2008). Especula-se que e ssas ocupações de terra receberam o apoio oficioso de alguns setores radicais do novo governo, que almejam uma implementação mais rápida do projeto de reforma agrária.

Ainda no fim do ano passado, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, chegou a enviar a Câmara dos Deputados um relatório sobre a ameaça que os campesinos sem terra representam para os milhares de brasiguaios proprietários de terra no Paraguai, atitude que ocasionou uma atmosfera tensa nas relações entre Brasil e Paraguai, já então desgastadas pelo início do processo de negociação para a revisão do Tratado de Itaipu.

Entre os momentos mais tensos vivenciados entre Paraguai e Brasil nos últimos meses está ainda o desenvolvimento pelo Brasil de exercícios conjuntos denominados Fronteira Sul nas regiões fronteiriças de Argentina, Paraguai e Uruguai, operação levada a cabo por mais de 10 mil homens provenientes das Forças Armadas, da Polícia Federal, Receita Federal, Polícia Militar e Polícia Civil, além de representantes de Organizações Ambientais (OSACAR, 2008). A forma de atuação brasileira traz reflexos para a região, já que muitos dos países sul-americanos vêem esses exercícios militares como uma demonstração do poder militar brasileiro dirigida aos países vizinhos e em conformidade com o papel de liderança que o Brasil procura assegurarno subcontinente.

A lei brasileira de número 11.631/07 prevê, em seu art. 1º, a Mobilização Nacional, entendida como “o conjunto de atividades planejadas, orientadas e empreendidas pelo Estado, complementando a Logística Nacional, destinadas a capacitar o País a realizar ações estratégicas, no campo da Defesa Nacional, diante de agressão estrangeira”. No Decreto 6.592, de 2 de outubro de 2008, por sua vez, temos a conceituação de agressão estrangeira, que são entendidas como “atos lesivos à soberania nacional, à integridade territorial, ao povo brasileiro ou às instituições nacionais, ainda que não signifiquem invasão ao território nacional”. Essa previsão legal abarca diretamente a situação dos brasileiros que vivem no Paraguai ao estabelecer que as ameaças e atos lesivos aos nacionais brasileiros serão tomadas como agressão estrangeira ao Brasil, ainda quando não signifiquem invasão ao território nacional. Em 14 de outubro de 2008, o jornal paraguaio chegou a publicar a seguinte manchete acerca do tema: “Decreto de Lula da Silva: Brasil amenaza a Paraguay y vecinos”.

Mais recentemente, entendimentos referentes à questão energética e à migração levaram as relações entre Brasil e Paraguai para águas mais plácidas. No último dia 25 de julho foram acordadas medidas referentesa esses dois temas na Declaração Conjunta realizada entre os dois países. Como conseqüência desse encontro, em 31 de julho, o Paraguai ratificou dois acordos migratórios. Dois deles tratam, respectivamente, da residência para nacionais dos Estados-partes do Mercosul e da inclusão de Chile e Bolívia, e dependiam apenas da aprovação paraguaia para entrar em vigor. As disposições beneficiam diretamente os brasiguaios, já que permitem regularizar sua situação como residentes permanentes no Paraguai. Os outros dois acordos migratórios ratificados hoje pelo Paraguai ainda dependem de aprovação pela Argentina e pela Bolívia. Os quatro documentos haviam sido firmados em 2002, em Brasília, durante reunião do Conselho do Mercado Comum (CMC), instância máxima decisória do Mercosul. Os documentos abrangem a igualdade de direitos civis como acesso ao trabalho, tratamento igualitário de migrantes e nacionais do país de residência e acesso à seguridade social, entre outros. Quanto a Itaipu, o governo brasileiro assumiu o compromisso de aumentar em cerca de US$200 milhões as compensações pagas anualmente ao país vizinho pelo uso de sua energia. Além disso, será permitido aos paraguaios oferecer a eletricidade no mercado brasileiro, de forma livre, ao invés de comercializá-la somente com a Eletrobrás.

O que ficou evidente com o fato de as decisões terem sido tomadas de forma conjunta, em uma única declaração, mesmo se tratando de temáticas totalmente distintas entre si, é o mecanismo de barganha utilizado como forma de resolução do problema. Se os acordos no âmbito da migração foram ratificados pelo governo paraguaio após sete anos de espera, é evidente que isso apenas foi possível devido a uma re-interpretação do Tratado de Itaipu e, em menor medida, ao estabelecimento da Lei 11.961, que beneficia os paraguaios ilegais no Brasil. De bônus, o mandatário paraguaio ganhou a possibilidade de recuperar sua popularidade, que havia sofrido um duro baque após os escândalos de paternidade. Sem sombra de dúvida,a questão brasiguaio é muito mais complexa e envolve fortes setores da política interna paraguaia, principalmente porque Fernando Lugo ainda terá de lidar com uma outra promessa de campanha, que é a realização da reforma agrária e que está diretamente ligada ao tema dos brasiguaios.

O que podemos concluir é que as recentes tratativas deixam clara uma postura mais aberta por parte de ambos os governos, brasileiro e paraguaio, mas estão longe de significar o fim dos conflitos envolvendo os brasileiros que vivem no país vizinho.P ensar a questão dos brasiguaios a partir de uma ótica mais ampla, onde além da questão cultural, são levados em conta questões e problemáticas como a agrária, a ambiental e a rede de atividades ilícitas por detrás de certos subgrupos brasiguaios, daria muito mais sentido às agendas políticas tanto do lado brasileiro como do lado paraguaio e facilitaria bastante a resolução de diversos desentendimentos. Enquanto não se firmar uma agenda mais ampla que envolva os interesses dos diferentes nacionais, a resolução desse conflito estará cada vez mais distante.

Referências bibliográficas

Suhayla Mohamed Khalil Viana é Mestranda em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança da Universidade Federal Fluminese - UFF e Assistente de pesquisa do OPSA/IUPERJ ([email protected])

Vitor Stuart Gabriel de Pieri é Mestrando em Relações Internacionais (Universita di Bologna) e Assistente de pesquisa do Estado Mayor de las Fuerzas Amadas de la República Argentina ([email protected])

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