Um Novo Começo para o START? Os EUA, a Rússia e a Proliferação Nuclear, por Cristina Soreanu Pecequilo & Alessandra Aparecida Luque
No final de 2009, o anúncio do aumento de tropas dos EUA no Afeganistão, a realização da COP-15, a ameaça do terrorismo, a postura nuclear do Irã e as avaliações sobre a crise econômica mundial ganharam destaque nos noticiários, deixando em segundo plano um evento que poderia, no ano do vigésimo aniversário da Queda do Muro de Berlim, ser considerado mais um dos diversos finais da Guerra Fria que se repetem desde 1989: o anúncio, por parte de EUA e Rússia, no dia 05 de Dezembro, do cumprimento das metas do START I (Strategic Arms Reduction Treaty), consolidando a redução em seus 40% de seus arsenais nucleares.
A data selou o encerramento de um processo iniciado em 1991, acelerado a sete anos atrás pelos Presidentes George W. Bush e Vladimir Putin em um dos momentos de mais acentuada cooperação entre ambos, sob os efeitos da coordenação estratégica gerada pelo 11/09 e a Guerra Global contra o Terrorismo (GWT), as quais se seguiram os desencontros e distanciamento da Guerra do Iraque e das ações unilaterais de W. Bush. Antes disso, em 1996, Ucrânia, Bielo-Rússia e Cazaquistão, já haviam anunciado o cumprimento de suas metas no START I. Tanto as diplomacias russa quanto americana apresentaram esta finalização como um marco a despeito de sua pouca visibilidade, e base de negociações de futuros compromissos, com implicações mais amplas para o debate multilateral da proliferação e do desarmamento.
Todavia, o fato de não ter sido fechado um novo acordo entre as administrações Barack Obama e Dmitri Medvedev, a pendência de questões sobre proliferação em termos globais (o citado Irã, a Coréia do Norte), demonstra as limitações envolvidas nestas negociações. Tornando o quadro mais complexo, declarações do Primeiro Ministro Vladimir Putin sobre o desenvolvimento de novas armas ofensivas pela Rússia e o estado de “prontidão” norte-americana diante dos Estados bandidos e falidos igualmente surgem como empecilhos. Estes dilemas envolvem a passagem das negociações nucleares russo-americanas da Guerra Fria ao Pós-Guerra Fria, a dispersão dos arsenais nucleares e a diferença de tratamento do tema entre os dois Estados no que se refere a terceiros países.
O START I foi assinado pelos Presidentes George H. Bush e Mikhail Gorbachev em 1991 e apresentado como uma das provas definitivas de superação da corrida armamentista entre os EUA e a URSS e do novo clima pacífico que passaria a dominar as relações internacionais. Porém, para cada uma das “novas superpotências aliadas”, o tratado simbolizava um momento e uma condição de poder diferenciadas.
Enquanto na origem das conversações nucleares dos anos 1970 o cenário era de paridade estratégica, referente à distensão e descongelamento entre as superpotências, somado à preocupação com a dispersão do conhecimento nuclear a terceiras nações que colocava em xeque o domínio bipolar do mundo por EUA e URSS, na década de 1990 as assimetrias predominaram. Portanto, os acordos dos anos 1970, possuíam uma face dupla: a limitação das armas nucleares pelos SALT I e SALT II (Strategic Arms Limitation Talks) e o Tratado ABM (Tratado Antimísseis Balísticos, que visava preservar a vulnerabilidade mútua entre as superpotências) e a contenção da proliferação cujas origens datam de 1967 com o Tratado de Não Proliferação (TNP) e as conversações para o banimento total ou parcial dos testes nucleares.
Por sua vez, os tratados da década de 1990 representavam a acentuação do poder estratégico dos EUA diante da URSS e os atos finais das iniciativas de Ronald Reagan ao longo de seus dois mandatos com a quebra dos compromissos do SALT e do ABM, sendo este último consubstanciado na Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE). O IDE, popularmente conhecido como “Guerras nas Estrelas”, tinha como prioridade proteger os EUA de ataques nucleares e foi um dos componentes de desestruturação da política soviética nos anos 1980- HALLIDAY, Fred (2008). Repensando as Relações Internacionais. 2aed Porto Alegre: Ed. UFRGS. Além de violar as prescrições do ABM, o IDE, caso funcionasse, tornaria inúteis os arsenais soviéticos. A inabilidade da URSS em responder tecnologicamente ao IDE revelou suas fragilidades e se inseriu no processo da ascensão de Gorbachev ao Kremlin e suas reformas econômica (perestroika), política (glasnost) e nas relações internacionais (novo pensamento).
Visando atualizar o sistema soviético, mas principalmente ganhar tempo diante da reação neoconservadora de Reagan na Segunda Guerra Fria, estas reformas reabriram o diálogo com o Ocidente, mas seus resultados foram opostos ao esperado e somente acentuaram a perda de poder da URSS. A Queda do Muro e o fim do Pacto de Varsóvia, com a redução unilateral das forças convencionais soviéticas da Europa, eram simbólicas deste esvaziamento, com os EUA conseguindo, apesar de seu declínio econômico relativo, negociar com a URSS de uma posição de força, o que se refletiu no START I, sua implementação e subsequentes conversações.
O START I converteu-se em um dos últimos atos da presidência Gorbachev pouco antes do golpe fracassado de Agosto de 1991, seguido pelo desmembramento da URSS no final deste ano. Na administração de Yeltsin (1991/1999), tanto o START I quanto as negociações para a conclusão e implementação do START II converteram-se em moeda de troca da “Rússia democrática” e parceira estratégica do Ocidente. O abandono do IDE pelos EUA no governo Clinton (1993/2000) e a preocupação em imprimir um discurso bilateral positivo marcaram este contexto, assim como a ajuda financeira à Rússia para manter e proteger seus arsenais e materiais nucleares.
Contudo, os avanços foram poucos. Com isso, o START I foi finalizado somente em 2009, enquanto o II e novas negociações não avançaram. Ao mesmo tempo, o IDE, agora sob o nome de TMD (Theater Missile Defense), foi retomado por George W. Bush, ao qual somou-se a ampliação da OTAN ao Leste Europeu (associada à promessa de instalação do escudo antimísseis na Polônia e República Tcheca) e o aumento da presença dos EUA na Ásia Central e no Oriente Médio por conta das Guerras do Afeganistão, do Iraque e dos contratos de exploração e transporte de gás e petróleo com antigas repúblicas soviéticas. Estas ações causaram mal-estar em Moscou, a despeito do pragmatismo de Vladimir Putin, sucessor de Yeltsin no Kremlin de 1999 a 2008.
Consciente da preservação da assimetria diante dos EUA, mas investindo na diminuição deste gap por meio da recuperação do Estado e da retomada da presença regional sustentada pelo elemento energético (gás e petróleo), Putin recuperou no campo nuclear uma posição mais assertiva, mantida por seu sucessor Medvedev (2009). A Rússia não tem se furtado em fazer uso do elemento nuclear como fonte de poder focando em duas táticas: o intercâmbio científico-tecnológico com nações emergentes e poderes regionais, dentre os quais merecem destaque a China e o Irã, e uma posição autônoma nas OIGs, em especial no CSONU.
Nesta segunda vertente, novamente o caso do Irã merece atenção, e o da Coréia do Norte, assim como sua diferença de tratamento. Se no tema norte-coreano, a Rússia e a China alinham-se aos EUA, atuando nas Conversações das Seis Partes, no iraniano, ambas consolidaram uma frente que diverge da posição dos EUA e da Europa Ocidental (França e Grã-Bretanha) no CSONU. A localização geográfica das nações, sua presença geopolítica na Eurásia, com o Irã surgindo como Estado-pivô, explicam esta diferença de pressões, assim como o interesse russo em manter-se como fornecedor de tecnologia e materiais nucleares ao Irã.
É preciso acrescentar que a Rússia no pós-Guerra Fria tem exercido uma política mais favorável ao desenvolvimento de tecnologia nuclear, o que representa uma mudança da postura contra a proliferação com os EUA na década de 1970. Porém, o Kremlin demonstra-se consciente de que esta dispersão deve ser seletiva e limitada a países com os quais a Rússia manteria boas relações e como elemento de barganha não se aplicando, por exemplo, a antigas repúblicas soviéticas como a Geórgia e mesmo à situação norte-coreana. Esta democratização seria vista como uma forma de aumentar o poder de barganha russo, mas que no médio e longo prazo poderia também ameaçá-la. O cálculo custo-benefício reside na percepção de que esta dispersão seria mais prejudicial ao interesse dos EUA que ao russo, o que lhe daria vantagens na negociação com os EUA. A recente cúpula Obama/Medvedev e a promessa de não instalar mais o escudo antimísseis na Europa Oriental podem ser vistos como produto deste contexto. A moeda de troca no século XXI é a da autonomia e não do alinhamento e a tecnologia nuclear é, ao lado do elemento energético, o pilar desta assertividade.
Do lado russo é um jogo arriscado, enquanto tenta recuperar suas bases ofensivas como já citado e lançar o novo plano de defesa russo a ser implementado a partir de 2010. Visa-se maior poder frente aos EUA e o redesenho de alianças estratégicas na Eurásia, sem desmerecer a atração norte-americana sobre a China, a sombra da presença bélica e as pressões neoconservadoras sob a administração Obama. Do lado dos EUA, a aproximação nuclear com a Índia revela-se como contrapartida destas iniciativas (embutindo riscos similares), assim como as hipóteses de um G2 (China e EUA), associada à preservação dos investimentos no setor de defesa, o incremento das tropas no Afeganistão e a recorrente ofensiva contra o terror.
Neste cenário, o START I revela-se uma peça da Guerra Fria, em um contexto de realinhamentos. Trata-se de uma discussão que deve ser ampliada à diferenciada arquitetura de poder mundial, envolvendo não só as antigas superpotências em suas atuais condições de poder, mas as nações emergentes como China, Índia, África do Sul e Brasil, as demais potências nucleares como França e Grã-Bretanha, e as potências regionais. Mesmo chamada de “velha política” a tecnologia nuclear permanece dual, sensível, e um fator de barganha e autonomia estratégica. Mais do que um novo começo para o START, é preciso de um novo começo para a proliferação nuclear.
Cristina Soreanu Pecequilo é Professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista – UNESP (Campus Marília), e Pesquisadora Associada ao Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS ([email protected]).
Alessandra Aparecida Luque é Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista – UNESP ([email protected]).
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