Haiti: uma reconstrução em pedaços, por Thiago Gehre Galvão & Rodrigo dos Santos Mota

No dia 10 de março de 2010 os presidentes René Preval e Barack Obama renovaram em Washington o compromisso da reconstrução haitiana. O terremoto que atingiu o Haiti não somente colocou o país no foco da política internacional como também demonstrou a complexidade que envolve as operações de ajuda humanitária, principalmente no que diz respeito à real proteção e salva-guarda dos direitos humanos. Passados dois meses da catástrofe algumas dúvidas persistem: qual o futuro da nação que já possuía o menor IDH do hemisfério ocidental, na medida em que o afã da comunidade internacional de reerguê-lo minguar? Como dissociar o processo de reconstrução e a ajuda humanitária internacional dos interesses de países e corporações internacionais? O objetivo deste artigo é, portanto, refletir sobre os desafios da reconstrução promovida pela comunidade internacional e a preservação de alicerces básicos como os direitos humanos.

O primeiro fragmento da reconstrução está no bloqueio dos vínculos entre passado e presente. O Haiti, a partir de sua história de colonização, espoliação e ocupação, tornou-se um desafio para a comunidade internacional e para a estabilidade do sistema interamericano. Na América colonial, a questão escravocrata e a luta contra ela caracterizaram o Haiti como o único território livre capaz de dar abrigo a refugiados e de receber rebeldes políticos; entre eles, o próprio Simon Bolívar, símbolo da luta unificada latino-americana; foi também o segundo povo a garantir sua emancipação política 28 anos após os Estados Unidos. Era uma afronta às grandes potências e à ordem colonial o sucesso de uma república negra e mulçumana em pleno Caribe ocidental.

No entanto, boicotes internacionais e períodos políticos desastrosos (ao todo, somam-se 30 golpes de Estado) promoveram sismos internos tão marcantes quanto o terremoto de 2010. A comunidade internacional tendia a uma “banalização” do estado de miséria e pobreza extrema em que vivia o Haiti e os avanços foram lentos e quase inertes. A resposta veio em 2004 com a Missão da ONU de Estabilização do Haiti (Minustah), que antes do terremoto logrou controlar a violência local e respaldar o erguimento de instituições básicas; entretanto, enfrentou um contexto interno adverso de tentativa de golpe, negociações político-diplomáticas frágeis e desastres naturais devastadores.

O segundo fragmento é a tendência invariável de impelir o desenvolvimento de fora para dentro. Todos os esforços engendrados mediante campanhas e doações às vítimas do terremoto, contrastam com uma espécie de “aproveitamento” da tragédia em causa própria. A ajuda internacional era inevitável e veio em cadeia após a faiblesse da Missão da ONU, que contabilizou entre os mortos o tunisiano Hedi Annabi e o brasileiro Luiz Carlos da Costa, chefe e vice-chefe da Missão no Haiti. A pujança de homens e máquinas dos EUA, a presença europeia, da responsabilidade histórica da França com sua antiga colônia e do pragmatismo alemão; atuações pontuais de alguns países como Brasil, Japão e China, bem como iniciativas transnacionais, de grupos, indivíduos e ONGs.

Todavia, paira a dúvida de porque a ajuda tardou tanto a chegar ao Haiti? A inexistência de um potencial estratégico, seja em termos de recursos naturais, seja em termos de poder econômico, fragiliza a posição do país; além disso, a baixa integração do país ao sistema de comércio interamericano e mundial mina suas capacidades de acumular riqueza e de barganhar empréstimos internacionais; a atratividade haitiana é nula e o país beira à invisibilidade internacional, contando apenas com a gestão da ONU e da assistência emergencial em tempos de crise. Em síntese, os ditames da ajuda internacional para o Haiti persistirão contaminados pelo germe dos valores interessados.

O terceiro fragmento aponta os usos e abusos da militarização das esferas sociais e seus malefícios em casos como o haitiano. Países desenvolvidos se aventuram a restaurar países devastados para ampliar sua influência e poucos são os casos em que o que importa são os direitos vigentes ou novas garantias. Dessa forma, os direitos humanos têm servido de justificativa ideológica para intervenções armadas que interferem na soberania das nações, nas liberdades fundamentais dos povos e na capacidade de produção de uma cultura política autônoma. A bandeira dos direitos humanos tremula entre boas intenções e oportunismos velados. Assim, potências transformam a defesa de valores morais em uma disputa de poder respaldada num discurso pró-Direitos Humanos, enquanto usam tropas militares “em favor da paz” e justificam sua ação no desengajamento humanitária. Ao contrário, o acúmulo de tropas militares parece suscitar uma espécie de “estado de sítio”, quando o que se esperava era, tão-somente, socorro e a garantia do mínimo existencial aos haitianos.

A imprensa internacional noticiou seguidamente a conformação de um “Plano Marshall” de assistência ao Haiti, o que parece fragmentar em mais um pedaço a reconstrução haitiana. Três são os equívocos principais de se associar o Plano de Reconstrução do Haiti com a ideia de um “Plano Marshall” para o país caribenho: a) As especificidades históricas do Plano Marshall; b) A inviabilidade de um plano de reconstrução aos moldes do Plano Marshall; e c) A formação de uma imagem distorcida da reconstrução haitiana.

O soerguimento da Europa contou com investimentos norte-americanos que deveriam seguir somente para áreas com clara ameaça soviética, robustecendo a fronteira de defesa dos valores capitalistas. No Haiti, o contexto estratégico de outrora, inexiste e alimenta as antigas frustrações do Brasil e de outros países sul-americanos esquecidos após a 2ª Guerra Mundial. Ademais, o Plano Marshall atendeu a um grupo seleto de países que havia vivido intensamente as diferentes fases de evolução capitalista e que possuíam uma cultura organizacional, política e econômica, adaptada ao progresso e à modernização. O Haiti obviamente não possui essa capacidade! Enfim, a imagem de dominação pela recolonização se perpetuará ao longo do tempo e o Haiti permanecerá subdesenvolvido e atado a um eterno plano de reconstrução.

Entende-se que a reconstrução haitiana está esfacelada em pedaços e o país permanece nas sombras de seus próprios escombros. O fardo do passado colonial, de ocupação e de autonomia nula, se junta ao processo oportunista e (des) interessado da ajuda internacional, à militarização da intervenção humanitária e à reinvenção de planos de reconstrução de caráter opressor. Trata-se de uma Doutrina de Choque para garantir que a democracia e o capitalismo sejam preservados como paradigmas no mundo. O antídoto é a garantia das liberdades e a promoção dos direitos humanos como a mola propulsora da reorganização do Estado e da sociedade haitianos. Portanto, tão importante quanto a reconstrução infraestrutural do país, é a estabilidade política calcada na proteção dos direitos humanos.

Thiago Gehre Galvão é Professor de História das Relações Internacionais do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR e doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília - UnB ([email protected]).

Rodrigo dos Santos Mota é graduando em línguas estrangeiras aplicadas às negociações internacionais na Universidade Estadual de Santa Cruz.

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