A acoplagem e a história de validade vencida nas relações internacionais, por Argemiro Procópio Filho

O código genético oriundo do relacionamento fora do casamento do rico com o pobre transmite à acoplagem uma feição teórica pouco ortodoxa, quase transgrecional. Todavia, caberá algum dia ao caráter quase bastardo desse paradigma a missão de justificar sua confessa imprecisão teórica, sua insuficiente sistematização e nebulosa composição conceitual. Verdade seja dita, com tantas desvantagens, a acoplagem sequer mostra apetite por síntese de critérios. Resiste com estofo econômico-sociológico suficiente para a necessária ossatura teórica que a agruparia ao estudo da teoria das relações internacionais raquítica por alimentar-se quase que só de políticas e de história de validades vencidas.

Particularidades dos mercados somadas à força dos vetores da cultura, da religião e do debate sobre identidades em nações avançadas e retardatárias prometem desafios normativos no exercício teórico do acoplamento. A interação madura – ao contrário da amputação promovida pelo racismo, pelo xenofobismo e pelo apartheid social que registram e vendem patentes de suas vítimas – impulsiona dinamicidade que a acoplagem secularizada guarda como vocação. Vida secular significa estar no mundo - seculum de forma autônoma e livre. Já na vida regular, sob o império das regras e dos limites, nela o que se perde em autonomia e liberdade se ganha em segurança e garantias.

Numa antítese metafórica de Robin Hood, a acoplagem ao invés de roubar dos ricos tira dos pobres e faz a abundância depender da escassez. Graças a isto, democratiza excessos de sorte e azar, certamente melhor que o mundo globalizado, prisioneiro de suas lealdades.

Ainda que demorem aceitar a acoplagem como um conceito, ela já merece pontuar no vocabulário das relações internacionais. As narrativas sociológicas bem como as econômicas, suas aliadas, jogam lado a lado. Causas e efeitos deste paradigma decifram encorpados simbolismos. Propagando ser o subdesenvolvimento mais sustentável que o desenvolvimento arquitetado pela modernidade, que os ricos também precisam dos pobres, o ensaio teórico nada absoluto da acoplagem se assume convergente. Fundido em linguagem metafórica de congruentes visões de mundo, seu pragmatismo não é circunstancial nem linear. Legitimando-se, apesar das ambivalências, esse exercício aposta suas energias na alteridade.

Tropeçando em premissas que deixou de evitar por convicção, se teoria ou não, o acoplamento nasceu senhor e senhora de várias dimensões de reflexão. Na sua identidade coletiva inexiste restos de mundo, nem norte e nem sul, mesmo porque, até onde se sabe, o firmamento não tem pé nem cabeça. Tudo que o processo de individualização enjeita para entrar na composição ou ser posto nos trilhos dos interesses da coletividade internacional, a falta de fineza retórica do sistema mundial os rotula de descartáveis; de improdutivos ou imprestáveis para serem explorados na interdependência da modernidade. Países espoliados no passado e hoje esgotados para satisfazer as demandas do capitalismo rival de si mesmo não têm lugar na acoplagem. O Haiti, a Bolívia, a Albânia, o Burundi e Ruanda estão nesta lista da exclusão.

Com matriz político-histórica sujeita a conflitos interpretativos, caso o ciclo das altas tecnologias se esgote como aconteceu com os ciclos das especiarias nos séculos XVII e com o dos combustíveis sólidos no século XX, caberá ao acoplamento a releitura do conceito do descartável na comunidade das nações. Coisa comum da esquizofrenia do poder, o ter, o conquistar e o apoderar para usar e depois abandonar são prática da lógica da ambivalência dos interesses. Esta lista ressalta a ambigüidade dos consagrados dogmas das desigualdades revelados na teleologia dos altares das democracias.

Criando para trazer ao debate novos argumentos, a acoplagem testemunhou ser nenhuma fantasia da globalização. A destreza que lhe é inerente garante intervenções por um bom lugar na constelação das reflexões próprias da sociologia das relações internacionais.

Vislumbrando partes da infinita distância que a sociedade humana precisa percorrer para chegar ao fim da história, o texto oferece elementos reafirmadores da pluralidade e da transnacionalidade dos interesses globais.

Para sondar modelos reflexivos, nada melhor do que o uso dos interesses medidores da escalação das particularidades e das tendências redesenhadoras do novo perfil da comunidade das nações. Aliás, comunidade assumidamente desconhecedora do tempo que sobra para os estados nacionais se reformatarem caso não queiram sucumbir sob o peso de suas próprias contradições.

A busca da endogeneidade e o divórcio analítico com tudo que mal explica a ordem ontológica e a fenomenologia do espírito das relações internacionais são os primeiros desideratos entre os tantos deste ensaio.

Numa antinomia mais parecida com um divisor de águas, o transnacionalismo acelera e o regionalismo freia a acoplagem. Distanciada das explicativas funcionalistas e estruturalistas, assim como das do realismo de duvidosa serventia na interpretação do futuro mundial, essa provocação fez advertências. Duvida das referências teóricas crescidas e amarradas em fronteiras geográficas; desconfia da sinceridade de atores e de dinâmicas históricas manipuladas por reduzido número de protagonistas, no mais das vezes uniformizados de Estados nacionais.

Apertados dentro dos limites onde giram os seus eixos temáticos, as interpretações viciadas no eurocentrismo e na epistemologia estadunidense dificilmente libertam-se de si mesmas. Liberadas cedo ou tarde da dependência dos equívocos, mesmo que não sintam, parte do destino destas interpretações, depende de mudanças paradigmáticas que, ao que parece, só a anarquia internacional impede tematizar.

Argemiro Procópio Filho é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília - UnB, pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq e professor visitante da Frei Universität Berlin - apoio da CAPES/MEC ([email protected]).

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