Os dilemas estratégicos da Grã-Bretanha no século XXI: capacidades militares e pretensões internacionais em confronto, por João Fábio Bertonha

Qualquer país que tenha pretensões de atuar no cenário internacional em defesa de seus objetivos e interesses nacionais deve dispor dos instrumentos adequados para tanto. O poder militar é um desses instrumentos e o descompasso entre pretensões internacionais excessivas sem uma adequada retaguarda em termos de força pode se revelar desastrosa, como indica, por exemplo, o caso italiano durante a Segunda Guerra Mundial. Dessa forma, parece razoável admitir que a sintonia fina entre os objetivos internacionais de um país e a sua máquina militar é algo desejável.

No plano teórico, é isso que deveria acontecer, mas raramente se realiza. Interesses corporativos de cada força ou instituição, deficiências de organização ou reflexão e outros elementos sempre colaboram para que os formuladores da política externa e os estrategistas sigam, com freqüência, caminhos diversos. Em alguns casos ou momentos, essa falta de comunicação é quase total e, em outros, muito menor, mas uma sintonia absoluta é muito rara.

Não se trata, contudo, na maioria dos casos, de uma simples questão de comunicação ou de superar interesses corporativos. No caso específico da estratégia de defesa (e da sua articulação com a política externa), um problema extra a ser considerado é que nem sempre (ou quase nunca) se podem prever com segurança os cenários futuros em termos de necessidade de uso de poder militar. Esse problema se torna ainda mais grave quando como, no caso das forças armadas, há um inevitável delay entre o detectar-se de uma necessidade, os investimentos e a criação de uma capacidade.

Numa situação de recursos infinitos, seria tudo mais simples. O problema é que estes recursos infinitos não existem e nem nações com orçamentos militares imensos, como os Estados Unidos, podem se dar ao luxo de tentar dar conta de todas as contingências e todos os cenários. Escolhas devem ser feitas em termos de pensar o papel do país no mundo nos anos e décadas a seguir e quais capacidades militares seriam necessárias para sustentar o mesmo. A partir daí, armas e forças devem ser preteridas ou favorecidas e a alocação de recursos deve ser decidida, o que, inevitavelmente, leva a escolhas, nem sempre fáceis.

Um país que enfrenta, atualmente, estes dilemas é a Grã-Bretanha, onde imensos debates estão acontecendo (como se pode recuperar em coleções on-line de jornais como a do Times, especialmente em fevereiro deste ano) a respeito do futuro das forças armadas, seu papel dentro da política externa do Reino Unido e da sua própria inserção no mundo.

Hoje, a Inglaterra é uma potência média. Em termos de riqueza, tradição diplomática, vínculos culturais com outros povos (como os EUA e os do antigo Império) e outros elementos de poder, Londres está razoavelmente bem servida e os utiliza para ampliar sua força internacional. A grande questão é que as pretensões inglesas de influência no cenário internacional vão muito além do que estes recursos possibilitam e demandam um aparato militar de importância.

Durante a Guerra Fria, parte importante dos recursos militares britânicos estava destinada à Aliança Atlântica, com forças terrestres e aéreas estacionadas na Alemanha (as quais incluíam formações blindadas e de infantaria que seriam cruciais para deter uma possível investida soviética), enquanto parte da Marinha se concentrava em bloquear o avanço dos submarinos soviéticos no Atlântico. Tarefas como a projeção de poder ficaram em segundo plano, o que quase impossibilitou, por exemplo, a expedição às Malvinas em 1982.

Com o fim da Guerra Fria, houve reduções em pessoal, infraestrutura e armamentos e, como seria de se esperar, as forças estacionadas na Alemanha foram especialmente diminuídas. A nova estratégia de defesa passou a enfatizar a capacidade de projeção de poder (normalmente em conjunto com a Aliança Atlântica, os EUA ou a ONU) e a coordenação entre as várias forças. Como resultado, reduções foram feitas nas unidades blindadas e de artilharia, assim como nos batalhões de infantaria do Exército, ao mesmo tempo em que eram encomendados novos e maiores porta-aviões (os da classe Queen Elisabeth) e outros equipamentos navais. Uma postura lógica, dadas as novas prioridades.

A Grã-Bretanha, hoje, é, em termos militares, uma versão menor das forças armadas dos Estados Unidos. Suas forças – mais ou menos 240 mil homens na ativa com outro tanto na reserva imediata - enfatizam a tecnologia, o treinamento e a profissionalização das tropas, ao mesmo tempo em que mantêm um aparato nuclear, de pequeno porte, mas capaz de garantir o status de grande potência a Londres.

A Marinha tem cerca de 90 grandes unidades navais e controla os quatro submarinos lançadores de mísseis estratégicos, além de uma força de fuzileiros navais com alguns milhares de homens. È a mais poderosa da Europa, com porta-aviões, submarinos nucleares e ampla gama de navios de superfície.

A RAF (Royal Air Force) é, igualmente, uma das mais importantes forças aéreas do mundo, com cerca de 900 aviões e helicópteros de combate de última geração, enquanto o Exército, com cerca de 150 mil homens, dispõe de forças blindadas e de infantaria de primeira qualidade. Instalações e facilidades em várias partes do mundo também colaboram para aumentar a capacidade de projeção de poder britânica.

Tal estrutura não está, contudo, isenta de dificuldades. Um primeiro problema é que o modelo americano de profissionalização mais tecnologia, ainda que muito eficiente, é extremamente custoso. Para manter 1,5 milhão de homens em armas seguindo este modelo, os Estados Unidos tiveram de despender a soma de US$ 600 bilhões em 2008, o que significa cerca de 400 mil dólares por militar. Já um país com recrutamento militar e opção por números pode despender bem menos, ainda que isso não signifique eficiência. O Brasil, por exemplo, gastou apenas 70 mil dólares per capita no mesmo ano e o Equador 16 mil.

No caso britânico, mesmo tendo o terceiro gasto militar do mundo – cerca de 65 bilhões de dólares ao ano em 2008, o que permitiu cerca de 270 mil dólares de gasto por militar – o disponível basta para manter em armas não mais do que duas a três centenas de milhares de homens. Esse número é claramente insuficiente para a capacidade de ação global ambicionada, gerando um stress intenso nos homens e recursos britânicos, como se viu nos últimos anos no Iraque e no Afeganistão.

Mais importante ainda é que tais recursos se revelam abaixo do necessário para manter um aparato nuclear digno de uma grande potência, uma Marinha capaz de ação global e um Exército e uma Força Aérea capazes de enfrentar as atuais ameaças não-assimétricas (como o combate ao terrorismo e contra-insurgência) e se preparar para contingências outras em que seja necessário anular, pela via convencional, as forças militares de outro Estado. Novos cortes e opções devem, obrigatoriamente que ser feitos e isso tem causado intenso debate dentro do governo e do comando militar do Reino Unido.

Os dilemas são realmente imensos. Alguns setores, especialmente no Exército, consideram que os riscos à soberania e à segurança direta do Reino Unido por parte de outros Estados são quase nulos nos anos a seguir. Para estes, os maiores desafios estratégicos britânicos estarão no campo da contra-insurgência, como ocorre agora no Afeganistão, e que, portanto, seria possível cortar drasticamente a força de dissuasão nuclear, a frota de porta-aviões e o programa de modernização da força de caças da RAF.

Esta, por exemplo, deveria ser reduzida a uma força de transporte e apoio ao Exército (com helicópteros e drones). Mais soldados de infantaria e menos navios e armas nucleares, inúteis para os desafios previsíveis do futuro e para a atual demanda no Oriente Médio.

Outras propostas para aumentar os efetivos de infantaria incluem o redimensionamento do programa de veículos blindados do Exército, a retirada total da Alemanha ou a de transferir os fuzileiros navais para o comando deste. Uma idéia radical que tem sido mencionada é a de “congelar” as forças blindadas: uma parte substancial dos 400 tanques Challenger 2 e da artilharia pesada seria colocada em depósitos especiais, sendo mantidos na ativa apenas os necessários para treinamento. Sua viabilidade técnica é questionável, mas indica bem o quase desespero do Exército para conseguir reforço de efetivos para a contra-insurgência no Oriente Médio, a qual tem representado um imenso desgaste para ele.

A resposta usual aos apelos do Exército é que não se sabe o futuro e que, portanto, seria perigoso confiar na presunção de que forças convencionais não seriam mais necessárias, pelo que caças, helicópteros antitanque e outras armas pesadas deveriam ser mantidas. Segundo esta visão, o Exército estaria impressionado demais pelo curto prazo e operações como as do Afeganistão não seriam, no futuro, a regra, mas a exceção.

A Marinha também argumenta que não é possível manter uma deterrência nuclear adequada com menos que quatro submarinos e nem exercer poder global com apenas um ou nenhum porta-aviões e uma adequada frota de superfície. Fazer esta opção seria tornar sem credibilidade e efetividade a força de defesa nuclear do Reino Unido, além de reduzir drasticamente suas possibilidades de ação global. Mais do que isso: na verdade, esta opção seria o reconhecimento da contração do país a uma posição ainda menos importante no cenário mundial.

A tendência do atual governo britânico parece ser a de tentar agradar a todos e responder a todas as demandas: manter o programa de novos super porta-aviões e de renovação dos caças (JSF e Typhoon), além de procurar estabilizar o efetivo do Exército em torno de 100 mil homens. Também se fortalece a idéia de ampliar os laços estratégicos com a França, de forma a otimizar os recursos dos dois países.

Não obstante os desejos dos políticos e dos militares, encontrar o dinheiro para financiar isto é, novamente, a questão central, já que as previsões orçamentárias e demográficas indicam que o orçamento militar deverá ser cortado, e não aumentado, nos próximos anos.

Não sei, evidentemente, como os políticos e estrategistas resolverão isto, mas tendo a acreditar que a capacidade de projeção naval e a RAF serão priorizadas, já que elas são a essência de qualquer estratégia de defesa por parte da Grã-Bretanha há séculos. A força nuclear, como símbolo de status, será mantida e preservada através do meio mais econômico possível e o Exército há de ser o grande perdedor, tendo que encontrar meios de lidar com o dreno de recursos no Afeganistão e em outros lugares e, provavelmente, perdendo um pouco da sua capacidade para a guerra convencional.

De qualquer modo, para um país que foi sede de um dos maiores Impérios da História e que, por séculos, controlou os mares com a mais poderosa força naval do mundo, é esta uma discussão bastante incômoda e até dolorosa. Não obstante, é necessária, já que a discrepância entre o que Londres gostaria de ser e o que ela pode bancar tem se tornado cada vez maior. Isso indica como organizar uma estratégia de defesa a partir do papel que um determinado Estado gostaria de ter no cenário internacional é algo fundamental, mas apenas parte do processo. Também é necessário levar em conta o quanto este Estado (e a sociedade que o sustenta) está disposto a pagar para sustentar este papel.

João Fábio Bertonha é Professor da Universidade Estadual de Maringá – UEM ([email protected]).

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